Economia Popular Solidária: Diversidade e identidade

Texto retirado de:
“Almanaque práticas educativas em economia solidária: tecendo os fios de nosso projeto político-pedagógico.”


Raça e etnia: as cores da Economia Solidária


A origem da desigualdade racial brasileira pode ser compreendida por meio de nossa própria história. Haja vista que na história da escravidão em nosso país o Brasil foi o maior participante no comércio de escravos. A escravidão durou quase 400 anos, sendo o último país a praticar a abolição, em 1888. Em que medida podemos dizer que a “abolição” não alterou de forma radical a vida dos ex-escravos? Sabemos que mesmo “livres”, eles continuaram cerceados de participar da vida social e política. Além de tudo, os brancos queriam convencer as negras e os negros que era uma grande vantagem tornar-se “trabalhador livre” (“livre” para vender sua força de trabalho ou para morrer de fome). Por isso ao longo do tempo, os quilombos, enquanto espaços de resistência foram crescendo e se multiplicando. Queriam ficar bem longe dos “brancos” (não porque os descendentes dos europeus fossem brancos, mas porque independentemente da cor da pele, aqueles homens vindo além-mar tinham um poder sobrenatural, ou seja, tinham poder terreno sobre negras e negros). Esse poder era assegurado pela propriedade privada da terra, pela herança, pela poupança, etc. Além disso, o poder dos brancos sobre negros era, entre outras coisas, assegurada por uma questão econômico-cultural que repercutiu na pretensa “superioridade do homem branco”.
As consequências foram extremamente perversas à medida que a escravidão dos negros e a servidão dos indígenas estão introjetadas na sociedade brasileira, sendo esses grupos os mais empobrecidos. As desigualdades são ainda maiores quando se trata das mulheres negras, pois são as mais atingidas pelo desemprego, exercem trabalhos precários e recebem os menores salários (mesmo tendo mais anos de escolarização que os homens negros). A escalada desigualdade é assim representada: homem branco, homem, negro, mulher branca e mulher negra.
Devido a essa realidade, devemos ter um olhar mais cuidadoso no que se refere às condições de existência da população negra brasileira. De acordo com o processo de constituição da nação brasileira, devemos manter um olhar à história, uma vez que nosso processo de constituição exclui a participação dos povos “vencidos” nesse processo. Não devemos nos limitar a ter como referência positiva personalidades de vulto que normalmente representam o típico modelo branco dominante.
A valorização de personagens históricos negros é realizar discriminação positiva de um grupo étnico-racial que pela história oficial, não é reconhecido enquanto colaborador no processo de constituição da sociedade brasileira, a não ser quando há alguma referência à escravidão. A medida que alteramos essa ótica, damos um passo importante enquanto povo.
Quando falamos em Brasil ou América Latina, estamos falando necessariamente em África. Mas esse pensamento não é imediato, pois fomos colonizados. Precisamos nos perguntar o que África significa para a história do mundo. No Brasil, mais de 50% das pessoas têm origem nessa cultura.
Quando os europeus chegaram a África buscaram “anular” a contribuição da cultura negra para o mundo. Para contrariar essa visão, é importante ver que a presença do negro no Brasil trouxe também conhecimento. Por exemplo, de Gana veio o conhecimento de exploração do ouro em Minas Gerais. Os bantus, originalmente agricultores, dedicaram-se à metalurgia/ferro e trouxeram esses conhecimentos ao Brasil. Não podemos em nossa sociedade por meio das religiões de matriz africana, aspecto de resistência da cultura e manutenção de suas crenças.
Essas são referências históricas, sociológicas e antropológicas fundamentais para pensar a formação das trabalhadoras e trabalhadores da Economia Solidária. São questões para pensar em nossa formação humana, em especial em formação como educadoras e educadores da Economia Solidária. Como dizem Marx e Engels, “até o educador precisa ser educado” (e também a educadora, claro!!!).


Gênero: homens e mulheres como fonte da vida



A equidade de gênero ainda é um desafio na Economia Solidária. Por vezes, vemos a reprodução das mesmas relações de opressão que encontramos no mercado de trabalho, ou melhor, no mercado capitalista de trabalho. Como vem ocorrendo em diversos espaços/tempos históricos, é possível perceber que há uma divisão sexual do trabalho também na Economia Solidária. Por que será que as mulheres aparecem mais em setores como o artesanato, a costura e a alimentação, e os homens, na construção civil, na reciclagem e no ramo metalúrgico? É impressionante o fato de que ainda há muita centralização das decisões nas mãos de homens. Ora, se a mulher está mais presente na produção, por que isso acontece?
Nas feiras de Economia Solidária, por exemplo as mulheres são a maioria. Nos cargos administrativos, os homens ainda são a maioria. Por que isso acontece? Se é tão difícil responder às perguntas que a vida nos faz, pelo menos temos de ter humildade para dizer “não sei”. Para Paulo freire, é muito importante que a educadora e o educador consigam admitir que “não sabem”. Qual o problema de não saber? Assim como nas redes de Troca da Economia Solidária, o que não sabe o outro ensina.
Como educadoras e educadores, mais que ensinar, nosso papel é instigar processos de ação/reflexão/ação sobre as relações de gênero. Já avançamos no que nos foi possível, mas muito temos que avançar na construção coletiva de práticas educativas que estimulem a equidade de gênero, que favoreçam a discussão entre os significados de ser homem e homem, ser gay, lésbica, bissexual, travesti e transsexual.
Ainda hoje, antes mesmos do capitalismo existir, vivemos um sistema de patriarcado, ou seja, reproduzimos relações econômicas e culturais em que há dominação dos homens sobre as mulheres. Como as mulheres podem resistir? Em termos macroeconômicos, hoje, as mulheres produzem 2/3 da riqueza mundial, mas acessam menos de 1% do que produzem. Isso faz com que as mulheres representem 70% da pobreza do mundo. É importante que, como militantes da Economia Solidária, como formadores e educadores populares, tenhamos essa dimensão do papel econômico das mulheres e o seu lugar no processo de produzir vida associativamente.
Entendemos que a Economia Solidária não será a “redentora da humanidade”, mas estamos certos de que o exercício da autogestão do trabalho e da vida social pode contribuir para a não hierarquização sexual do trabalho entre homens e mulheres. Práticas de trabalho associado e autogestionário podem favorecer o empoderamento de mulheres e homens rumo a ma sociedade em que qualquer performance de gênero seja acolhida, e não discriminada.


Classe social e Economia Solidária



A OMS diz que 29% dos trabalhadores apresentam algum distúrbio emocional e podem superar os vitimizados pelo câncer. O emprego está em crise e o trabalho estável é cada vez mais raro. O que os trabalhadores fazem quando a fábrica não comporta todos? Como construir uma identidade dos trabalhadores para além das fábricas? A Economia Solidária poderia ajudar na construção dessa identidade? Fomos perdendo uma certa identidade de classe, mas, sem essa identidade, como podemos enxergar os conflitos sociais?
Parece que está fora de moda falar em classe social. Porém ao nos deparar com o mundo do trabalho e sentir suas contradições, percebemos que há uma coisa errada neste mundo. Percebemos que somos todos trabalhadoras e trabalhadores, que a uma identidade que nos une. Aos poucos, descobrimos que o fortalecimento das lutas coletivas é fundamental.
O desejo de mudança, quando passa por vários indivíduos, é um disparador do processo de ir contra aquilo que antes era tido como natural. É um contexto de colocar a insatisfação para fora e conseguir agrupar pessoas que estão incomodadas da mesma maneira. Assim o processo de mudança é facilitado pela organização coletiva.
O trabalho cria um recorte de identidade comum e que pode se transformar numa consciência de classe. Essa consciência não vem naturalmente, deve ser construída. Falar em classe social e consciência de classe parece fora de moda, mas achamos fundamental para a compreensão dos desafios das lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores da Economia Solidária. É difícil discussão, mas que deve ser enfrentada. Se classe é um processo histórico, isso faz parte da nossa formação. Reivindicamos a luta de classe porque ela existe. E por isso precisamos pensar em como funciona o sistema capitalista e quais as estratégias e artimanhas do capital.
Mas o que é classe social? A classe social é um fazer-se. Ela acontece quando mulheres e homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem a articulam a identidade de seus interesses entre si, contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A classe é uma formação tanto econômica como cultural. “A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais” (THOMPSON, 1987, pg. 10). Por isso, é fundamentalmente uma experiência coletiva que, depois de vivida e percebida, pode se transformar em uma “experiências’ que contribua para transformar as relações opressoras a que estamos submetidos(as) no sistema de capital.
Os sujeitos de Economia solidária acabam não se percebendo como trabalhadoras e trabalhadores. É fundamental, nos trabalhos da formação, sempre resgatar que pertencemos a uma classe trabalhadora e que projeto educativo da Economia Solidária vem acompanhado de um societário. Possivelmente, existem muitos projetos societários no interior da Economia Solidária. No entanto, todos eles parecem se encaminhar para o mesmo horizonte, para uns não tão distantes. É fundamental olhar para a forma como produzimos nossas vidas, ou seja, como vamos nos formando e nos fazendo trabalhadoras e trabalhadores. O mundo material é fonte de produção de nossas vidas que construímos nossa subjetividade, que é manifestada de diversas maneiras (dança, poesia, música, artes plásticas... manifestações culturais diversas). Precisamos olhar para essas novas experiências de produção de vida, fruto da Economia Solidária. Essas experiências coletivas estão dando o tom da nossa luta pela construção de outra sociedade. Nesse processo é importante entendermos que é preciso partilhar essas novas experiências e talvez esteja aí um dos papéis dos educadores populares envolvidos na Economia Solidária. Nossa identidade de trabalhadoras e trabalhadores da Economia Solidária, como nossa identidade de classe se constrói a partir de nossas próprias experiências de produzir a vida associativamente, e solidariedade aos demais trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade (sejam eles assalariados fixos ou temporários, sejam ele trabalhadoras “por conta própria”).



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